Nota biográfica de Sérgio Niza (1)
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Sérgio Niza nasceu em 1940, em Campo Maior. Originário de uma família abastada, frequentou o Liceu Francês Charles Lepierre, em Lisboa, onde tomou contacto com Rui Grácio (1921-1991), um dos raros pedagogos que guarda a memória das ideias e dos projetos do princípio do século. Este discípulo de António Sérgio (1883-1969) – intelectual que frequentou o Instituto Jean-Jacques Rousseau e que dirigiu o grupo português da liga internacional para a Educação Nova em Portugal – revelou-lhe o prazer do pensamento crítico e autónomo, bem como a importância de uma atitude cívica exemplar. Ensinou-lhe, também, que a escola era um lugar possível, isto é, que poderia investi-la como espaço de liberdade e de crescimento.
Entretanto, Sérgio Niza lê Sebastião da Gama, professor e poeta, que no Diário construiu toda uma narrativa romanceada e emotiva do seu magistério. Prosseguindo as utopias pedagógicas dos anos 20, Sérgio Niza passa a frequentar a escola do Magistério Primário de Évora, completando, assim, o desejo de tornar-se educador profissional (1963). Portugal vive, então, um período particularmente difícil da sua história. O período ditatorial, instaurado em 1926, torna-se cada vez mais repressivo e fechado ao exterior. Assiste-se a uma rutura radical com a pedagogia democrática e inovadora e à adoção de práticas ditas tradicionais, fortemente impregnadas de uma ideologia católica conservadora. Em 1961 rebenta em África a guerra colonial, e os anos que decorrem até à Revolução dos Cravos, em 1974, são marcados por conflitos sociais e políticos muito agudos. É o tempo da génese de uma nova geração pedagógica que se definirá pelo compromisso cívico e pelo esforço de construção de novas práticas educativas. Sérgio Niza impõe-se, ainda bastante jovem, como uma das personalidades de referência desta geração, sobretudo pela capacidade de traduzir em práticas pensamentos teóricos e em produzir teorias a partir de uma reflexão sobre as práticas. A sua pedagogia é fortemente enraizada numa perspetiva cultural e cumpre-se pela ação cívica e pelo compromisso social: Sérgio Niza sente-se portador de uma história e de um desígnio. Tal facto permite-lhe inscrever os seus métodos de trabalho e os seus modelos escolares num projeto mais vasto de respeito pelo indivíduo e pela sua liberdade. Trata-se de uma intenção subversiva no Portugal de Salazar, tanto mais que ela se prolonga por uma crença extrema na importância da partilha, princípio que ele eleva a atitude pessoal e profissional. Sérgio Niza tem um sentido profundo da história, o que o conduz a procurar filiações, a buscar compreender a historicidade do nosso presente. Sabe como a espessura da história dá firmeza às suas responsabilidades pedagógicas, quer dizer, sociais e políticas. A construção de redes é a finalidade que se dá a si próprio e que vai prosseguindo sem cessar: criando pontes, trabalhando em comum, definindo projetos coletivos, produzindo movimentos de opinião, consolidando culturas profissionais. Um companheiro de liceu já testemunha essa disposição: «Ele não procurava o sucesso. Procurava outra coisa que eu tinha dificuldade em captar. As preocupações dele dirigiam-se já para a filosofia e para a pedagogia e, à semelhança de Rui Grácio, seu professor e amigo, sabia escutar muito bem. Deixava ao outro cuidar da descoberta. Não explicitando nunca demais, limitava-se a impulsionar ligeiramente.» Muito cedo compreendeu que o desenvolvimento cultural de cada um se realiza no interior dos seus próprios universos culturais. Na Escola do Magistério montou uma espécie de pedagogia paralela baseada numa intensa atividade cultural (a poesia, o teatro, a pintura...). A leitura dos pedagogos da Educação Nova, mas também dos escritores portugueses, especialmente do século xx, dão-lhe a força para exigir urna formação crítica e autónoma dos alunos-mestres, recusando tudo o que fosse contra a sua liberdade: «Niza foi livre antes mesmo que nos tenhamos apercebido do que era a liberdade» (testemunha um colega da Escola do Magistério). Os primeiros anos de vida profissional são decisivos no percurso de Sérgio Niza. Professor do ensino primário em Évora, em 1963-64, é imediatamente proibido de ensinar nas escolas públicas por decisão do regime salazarista. De volta a Lisboa, procura abrigo num colégio privado, onde é, de novo, interditado de ensinar. Entra, de seguida, para o Centro Infantil Helen Keller, onde um grupo de educadores e de médicos procurava ensaiar um projeto pioneiro de integração escolar para crianças cegas, amblíopes e normovisuais. Este grupo, dirigido inicialmente por Maria Amália Borges, ao tempo exilada no Canadá, tinha redescoberto Freinet, mostrando à evidência que uma escola sem exclusões era possível. Niza encontra lá referências úteis para a definição do seu caminho educativo. Através do ensino privado reencontra Rui Grácio, com o qual passa a colaborar em projetos de formação contínua (Sindicato Nacional de Professores do Ensino Particular) e de investigação (Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Calouste Gulbenkian). No Boletim do Sindicato escreve, em 1965: «A escola para a vida e pela vida é agora a vida dos professores e dos alunos, com a sua realidade própria de um grupo social, sem artifícios ou sem situações artificialmente criadas para o ensino.» Por seu turno, e graças ao trabalho no Centro Helen Keller, toma contacto com João dos Santos, um importante psicanalista que trabalhara com Henri Wallon e que constituiu uma referência essencial para várias gerações de educadores portugueses. O ano de 1966 marca uma viragem fundamental. No Congresso de Perpignan, a Federação Internacional dos Movimentos da Escola Moderna (FIMEM) reconhece a criação de um grupo português cuja responsabilidade será assumida por Sérgio Niza e Rosalina Gomes de Almeida. É o primeiro passo formalizado de um longo processo de organização associativa de professores que constitui o esforço vital de desenvolvimento pessoal e profissional de Sérgio Niza, tanto no plano das ideias pedagógicas, como no que diz respeito à implementação de práticas escolares inovadoras. O Movimento da Escola Moderna portuguesa (MEM) é o único grupo estruturado de professores que subsiste desde os anos 60, mobilizando associados em todo o país. A sua história confunde-se, de muitas formas, com a vida de Sérgio Niza. No fim dos anos 60, Niza faz duas estadias em Paris (no Institut Pédagogique National, como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian), o que lhe permitiu conhecer melhor (e criticamente) a pedagogia Freinet, num momento de dissonâncias marcadas pelas perspetivas da pedagogia institucional, e trabalhar mais de perto no campo da integração de crianças com desvantagens, bem como no estudo da formação de professores. De regresso a Portugal, prolonga esta sua ação no Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógica, assumindo em 1973 a direção do serviço de educação terapêutica de A-da-Beja, uma experiência institucional ligada ao ensino e à integração educativa e social de crianças em desvantagem (com deficiências ou inadaptadas). Este trabalho, que dá um novo passo após a revolução de 1974 e que se desenvolve até 1990, constitui o segundo grande eixo estruturante do percurso e da reflexão de Sérgio Niza (2). O modo como se afasta progressivamente das «pedagogias especiais» para afirmar a existência de uma única pedagogia capaz de responder às necessidades dos diferentes grupos e pessoas definiu uma evolução teórica e prática que marcou fortemente o conjunto do tecido educativo português. Tanto no interior do Movimento da Escola Moderna, como à cabeça da equipa de A-da-Beja, Sérgio Niza consagra uma atenção muito particular às questões da formação dos profissionais de educação. Tendo como princípio que qualquer esforço de formação pressupõe uma reflexão sobre as experiências individuais e a sua partilha dentro de um enquadramento coletivo, concebe os espaços de discussão como lugar por excelência do desenvolvimento pessoal e profissional. O conjunto do seu itinerário pode ler-se à luz desta reflexão, na qual investe o máximo das suas energias e das suas convicções: «A formação sistemática e permanente dos professores, a partir de uma lógica de autoformação cooperada, se possível no seio das suas equipas ou dos seus grupos dotados de uma certa continuidade, constitui o meu interesse prioritário. Uma outra das minhas preocupações é assegurar o sucesso dos alunos nas aprendizagens, assim como o seu prazer na vivência do quotidiano escolar. Finalmente, é preciso dizer que a não segregação das crianças portadoras de incapacidades ou em desvantagem social, através de políticas de integração educativa e social, representa uma obsessão permanente do meu trabalho». (Notas autobiográficas redigidas em 10 de março de 1991). Cerca dos anos 80, o trabalho de Sérgio Niza conhece uma difusão importante nos Estados Unidos da América. Investigadores americanos interessam-se pelo seu «modelo pedagógico», especialmente pela coerência com que constrói práticas escolares convergentes com um conjunto de valores e de princípios teóricos. Este contacto – mas também o desenvolvimento das ciências da educação durante os últimos anos, que produziram mudanças importantes no panorama da reflexão pedagógica em Portugal – levaram-no a consagrar mais tempo à investigação, à difusão e à formalização escrita dos seus propósitos. A decisão um tanto surpreendente de obter um diploma de estudos superiores especializados em investigação educacional (1963) e uma especialização pós-graduada em psicologia da educação (1996) compreende-se à luz deste movimento, mas também pela vontade de acompanhar de forma crítica a evolução do universo científico em educação. Hoje, vive uma fase de transição profissional, sem nunca se afastar dos grupos e das pessoas que ajudou a formar e que em muitos aspetos o construíram como pessoa e como pedagogo. A sua vida é também a trajetória de uma geração que orientou a educação na passagem da ditadura para a democracia. E, no entanto, Sérgio Niza fez o seu próprio caminho, marcado por uma singularidade e uma obstinação que o distinguem na pedagogia portuguesa. António Nóvoa Graça Vilhena Versão traduzida e adaptada da introdução ao capítulo sobre Sérgio Niza em Pédagogues contemporains (1996). Dir. Jean Houssaye. Paris: Armand Colin Notas (1) Membro do Conselho Nacional de Educação (conselheiro cooptado); Professor no Instituto Universitário – ISPA (1982-2010) e convidado em várias universidades; agraciado com o grau de Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública (2005). (2) É de distinguir o trabalho pioneiro, iniciado em 1981, na educação de crianças surdas para a aprendizagem precoce da Língua Gestual Portuguesa e o seu uso na aprendizagem do português escrito e na apropriação do currículo escolar. |