ESTÁ CÁ O SÉRGIO NIZA...
|
Este pequeno diálogo ouviu-se nos camarins do Teatro da Cornucópia desde há muitos anos. A pergunta fi-la eu talvez da primeira vez. Foi sendo feita por muitos actores ao longo do tempo de existência da Companhia. (Talvez 40 anos). Lembro-me do Jorge Silva Melo da vez mais antiga. Não me lembro da sua resposta mas teria sido esta, talvez: “é uma pessoa muito interessante, muito inteligente, das Pedagogias.” Depois, lembro-me do José Manuel Mendes. E a resposta lá nos camarins era sempre o Zé Manel que a dava. Lá vinha sempre a resposta: “é uma pessoa muito culta, muito inteligente, um amigo meu”, nunca acabada porque alguém terá sempre dito: “Calem-se! Não quero saber quem está!” Coro dos presentes: ”O Zé Manel só representa se tem convidados”. Comentário amargo do Zé Manel, humilhado: “a gente gosta mais de representar quando tem gente de quem gosta na sala. Mas pronto, eu calo-me.” E depois, voltando-se para mim no camarim ao lado: “A gente gosta mais de representar para quem gosta, não é verdade?…” E não digo mas podia dizer ao Zé Manel, mais baixo: “Eles não sabem quem é…”.
Eu partilho o ponto de vista de todos: gosto muito de não saber quem está na sala. Sinto-me mais livre e mais estimulado a dar o melhor a quem não sei quem é. Faz bem ao ego ser generoso. Mas gosto de representar para uma pessoa de quem goste muito, muito. E faz parte daquele prazer de imaginar e ainda acreditar que vale a pena conhecer sempre mais gente, que algures na sala podem estar uns olhos que eu não conheça mas parecidos com os que eram os meus quando vi, por exemplo, a Glicínia Quartin representar pela primeira vez. Gosto da mudança. Mas sei que estar o Sérgio na sala significa que terei direito a um pensamento crítico, uma observação de mestre, ex catedra. São sempre pensamentos complexos, com alguma informação erudita, que lhes confere autoridade e ao mesmo tempo testam a cultura geral de quem o ouve. Às vezes é para mim difícil porque fala muito baixinho e estou a começar a estar mais surdo. E ou finjo que ouvi, e só metade do efeito da frase em mim ecoa, mas reforça-me a sensação de pequenez perante um senhor tão culto, ou parto do princípio de que, com a falta de Cultura que me caracteriza, embora muita gente não acredite, de certeza que não sei de quem está a falar, e portanto não faz mal não ouvir. O efeito pretendido pelo Sérgio é o mesmo: dignificar o meu trabalho com uma informação erudita como fazem os universitários e os sacerdotes na homilía, conferir autoridade à sua opinião. Quem me salva normalmente nestas ocasiões é a presença da Ivone, mulher do Sérgio, minha companheira de faculdade, que em tempos que já lá vão, com grande generosidade, faltando um elemento para completar o meu primeiro espectáculo, se ofereceu para fazer o pequeno papel de Soldado no Anfitrião de António José da Silva, e interrompo para lhe ir dar um beijo. Tinha estado escondida atrás do Sérgio, calada. É claro que as opiniões do Sérgio são sempre muito inteligentes, nem ele é pessoa para lograr expectativas. Mas para mim, o Sérgio é sobretudo a pessoa que deu trabalho ao meu irmão Dinis, quando voltou de Inglaterra, antes de morrer pouco tempo depois. Ou é o Sérgio que nos recebe na sua casa de Campo Maior e me leva a ver o Castelo de Inês de Castro, ao pé de Badajoz. É o Sérgio sem público. Ou o Sérgio com curiosidade por tudo, e para quem se demore a perceber quem as pessoas são, sim, cada ser humano analisando-o sem dó nem piedade com aqueles olhinhos cruéis debaixo dos óculos. Quando com língua viperina parece que diz supérfluos floreados, e realmente, tentando falar verdade. Foi desde sempre, suponho, essa curiosidade, para além de eu ser filho do Professor Cintra, certamente, que isto do lado mundano da vida também lhe interessa e muito, que o terá levado a seguir o que fazemos tão atentamente. E cedo me habituei a tentar perceber no seu velado (púdico?) discurso se tinha gostado ou não. E pareceu-me que gostou, quase sempre, e muito. Mas não é um juízo valorativo o que ele profere, embora no fundo, o seja. É, pelo menos aparentemente, um discurso de análise do espectáculo que pretende ser o que corrige críticas e salamaleques e quer ser a mais douta (neste caso inteligente) opinião de entre todos os espectadores. Mas diz às vezes grossa asneira, (ou, cansado de pensar, teria passado pelas brasas?). Nunca mais me esquecerei do que me disse quando, depois das várias horas do Ricardo III que fizemos em 1985, há 30 anos !!!, tinha eu 35, me disse: “Depois disto que vais fazer? Já fizeste tudo…” Eu sei, não era um convite ao suicídio, mas fiquei um bocadinho triste. Matar-me? Acabar aos 35 anos, com o meu primeiro papel e a primeira encenação de Shakespeare? Vinguei-me, se era isso que escondia a sua frase, fiz muito mais depois disso, fiz tudo e mais alguma coisa, como se costuma dizer. Eu sei, foi um desafio. Foi talvez para eu um dia lhe dizer isto que me disse tão grande asneira. Mas seja como for, não era chegar ao topo de carreira aquilo em que pensava quando fiz o Ricardo III. Pensava na relação do Homem com Deus e no exercício do Poder Político, coisa com que me continuo a debater. Mas a sua erudição sabe bem demais quanta autoridade já escreveu sobre o assunto e como a História da Humanidade é à luz dessa perspectiva que será interessante analisar. O que eu teria feito era portanto matéria importante para ser pensada. Mas seria sempre pobre o que eu poderia dizer. Para quê levar por aí a conversa se se resumiria a ouvir-me dizer meia dúzia de banalidades? Agora a mesma pergunta se continua a fazer sempre que o Zé Manel anuncia que “está cá o Sérgio”. E se algum dos mais novos actores pergunta quem é, há sempre alguém que atalha a explicação que o Zé Manel acaba por dar, e diz logo: “é um amigo do Zé Manel”. E eu digo para com os meus botões: “Afinal quem é?” e posso cantarolar: “é um bichano paciente de olhar mis-te-ri-oso… (bis) tchim pópóó, pópó tchiim (bis)… tem patinhas de veludo mas às vezes é manhoso… tchim pópóó, pópó tchiim (bis) tchim pópóó, pópó tchiim (bis)… mas às vezes é manhoso!” Sérgio, um abraço do Luís Miguel Cintra |